domingo, 19 de junho de 2011

Do outro lado


                Os óculos de grau para o problema de visão dele estavam postos na face fazendo seu trabalho de aproximar a imagem. Os ombros curvavam-se sobre a mesinha do quarto do apartamento. O abajur estava ligado, concentrando-se no centro do papel almaço que era preenchido com a letra desenhada do rapaz. As frases formavam uma carta, uma carta de amor.
                De repente, ele sente pelos macios roçarem em suas pernas. Era Bob, seu labrador de pelagem amarelada, lembrando cor creme.
                - Hey! Companheiro, está aí! – ele para de escrever e concentra-se no animal ali ao lado. Acaricia a cabeça dele depois, todo o corpo. O cachorro late como se quisesse agradecer o feito. – Como sempre, está aqui do meu lado. – sua voz saiu um pouco desanimada e o cão põe as grandes patas sobre a mesa. – Sim, estou escrevendo mais uma carta, meu caro amigo.
                Bob retira as patas, como se não quisesse sujar os papéis e sai do quarto. Alexandre sai em seguida, não terminando o parágrafo que começara: “Ah, se fosses minha, se fosse teu, o mundo seria tão mais perfeito e límpido, meus olhos jamais precisariam de óculos, pois eu veria o amor todos os dias... Contudo não és minha...” . Chega à cozinha arrumada, cozinha um bife ao molho madeira que ele adorava, prepara uma salada com verduras e legumes frescos, senta-se a mesa e começa a comer.
                Ele para por um tempinho, deixando um pedaço cortado de carne no garfo de prata para olhar o horizonte. Depois, torna a falar com Bob, como fizera no quarto.
                - Sinto falta dela, Bob. Mesmo ela não sendo minha, sinto cada dia mais sua ausência. Mesmo ela não sabendo de meus sentimentos, de minhas cartas que sempre escrevo e não possuo uma mísera merda de vergonha na cara para entregá-las a ela, não consigo viver sem ela. Sem minha Roberta não vivo, simplesmente existo. – ele para, vê que o animal de estimação sentou no chão, frente a ele para escutar tudo. Ele sorri, abaixa o olhar, tira os óculos e o joga na mesa – O que estou fazendo? Falando com meu cachorro. – ele ouve um chorinho vindo do chão – Acalme-se Bob, gosto de você, mas você é um animal, não fala nossa língua humana, não pode me ajudar, me aconselhar, você é um cachorro.
                Ao terminar a refeição, o pequeno homem moreno claro,magrelo e meio desajeitado lava a louça, enche a vasilha de água para seu animalzinho e enche também a vasilha de ração. Vai em direção ao banheiro, toma um bom banho quente, escova os dentes e vai dormir.
                Dormiu pensando nela, claro. A noite fria propiciava pensamentos de um possível aquecimento corporal entre ele e a pequena que ele amava em segredo. As cobertas grossas e a cama de casal pediam por um corpo além do dele ali. Ah, como ele queria realizar aquele pedido...
                O dia amanheceu. Como de rotina, o homem fraco acordou, lavou o rosto, preparou um café expresso e comeu algumas fatias de pão integral. Voltou ao quarto para despir-se do pijama e colocar um jeans desbotado, uma camisa pólo, tênis all star branco e lembrou-se de pegar também os óculos. Ao olhar para a mesinha ao lado da cama, não viu a carta inacabada. Nem pensou nisso de início e terminou de se aprontar para a faculdade e saiu.
                No caminho, lembrou-se de não ter visto a carta. Estranho, todos os dias as cartas sumiam durante a noite, todas as três cartas diárias sumiam misteriosamente. Deu de ombros e tirou outro papel almaço da mochila. Começou outra carta, iniciando pelo parágrafo inacabado da anterior. Todos no ônibus o olhavam e ele tampouco se importava.
                Na faculdade houve várias oportunidades para que seu pensamento flutuasse até Roberta. Aqueles olhos castanhos, os cabelos acobreados, as bochechas rosadas, o sorriso branco e delicado, o corpo curvilíneo na medida certa... Isso lhe dava cada vez mais inspiração para escrever as cartas. “Sempre imagino seus beijos, meu futuro amor. Imagino como devem ser seus lábios macios ao tocarem os meus, demonstrando um amor puro e sincero. Eu penso em minhas mãos abraçando-lhe a cintura de modo carinhoso tal, que não quererá ir embora. Ah! São só pensamentos tolos de meu ser.’’.
                Alguém chega e ele guarda a carta. Avermelha-se ao perceber que Roberta veio falar com ele.
                - Escrevendo mais uma carta? - ela abriu o sorriso que ele amava.
                - Sim – ele diz um pouco cabisbaixo. Ela nunca parava para falar com ele na faculdade, ainda mais durante uma aula de fotografia, no curso de Publicidade que ambos faziam.
                - Ah! Tchau. – ela diz, deixando-o confuso. Na verdade ela também ficou confusa, falou com ele por impulso. Mas aquela imagem jamais sairia da cabeça de Alexandre.
                Acabou o período de aula e mais uma vez, o futuro publicitário pegar o ônibus de volta para casa. Já era de tarde, era hora de escrever a carta da tarde. Nesta, ele descrevia o lindo pôr-do-sol que eles veriam se estivessem juntos. Bob mais uma vez atrapalha os pensamentos do dono, sentando-se ao lado dele no sofá grande.
                Dessa vez, não para de escrever a carta, esta ele terminaria. Quando acabou, deixou-a na escrivaninha do quarto, junto com a carta da manhã e foi tomar um lanche. Sanduíche de peito de peru com suco de manga. Para Bob, água fresca e ração de carne.
                O dia passa, termina, dando espaço para a noite gostosa chegar. Já eram nove horas da noite, hora da carta da noite. Alexandre não hesitou e pôs-se a escrever. Terminou, selou com um beijo, imaginando o dia que teria coragem para entregá-la e deixou-a ao lado das outras duas. Aprontou-se e foi dormir.
                Bob, como fazia todos os dias, esperava seu dono deleitar-se de sonhos benéficos e mágicos e então adentrava o quarto, ia até a escrivaninha organizada e pegava as cartas com todo o cuidado e saía de casa. Atravessava a cidade, até a casa de Roberta, e passava os papéis pela abertura da porta e voltava para casa. Todas as noites.
                Porém essa noite, Roberta estava acordada, queria saber quem deixava as palavras mais lindas de todas para ela. Ao perceber que elas haviam chegado, correu e abriu a porta. Estranhou-se com o cão na sua porta. Este, sentou-se e ficou a mirá-la.
                - Hey! Bob! O que faz aqui? Alexandre mora do outro lado da cidade, meu bem. – ela acaricia o cachorro. Sabia que era de seu colega universitário por já vê-lo passeando com o canino pelo parque. – O que é isso em sua boca? - ele ainda estava com a terceira carta entre os dentes. Ela retirou o papel, uma surpresa. – Ai meu Deus! – gritou assustada. Depois sorriu.
                Ela dormiu como um anjo aquela noite: seu príncipe era aquele por quem seu coração batia mais forte, aquele que ela sempre teve vergonha de dizer aquilo que sentia por medo da reação dele, afinal, ela era a mais bonita do curso.
Acordou no outro dia e viu que Bob não estava lá. Sorriu novamente a recordar-se quem havia mandado tantas cartas. Até mesmo aquela inacabada. Ela arrumou-se, foi à faculdade, retornou para casa. Nem um segundo se quer a imagem de Alexandre saiu de sua cabeça.
                Ela mal abriu a porta da casa e correu, pegou as cartas que ela guardava em uma caixa em cima da mesinha de centro. Guardou-a na bolsa e saiu para o outro lado da cidade. Chegou a um prédio bege, subiu no andar décimo e tocou a campainha do apartamento 512.
                - Roberta? - Alexandre espanta-se. O corpo moreninho fica quente de surpresa.
                - ‘’Ah, se fosses minha, se fosse teu, o mundo seria tão mais perfeito e límpido, meus olhos jamais precisariam de óculos, pois eu veria o amor todos os dias... Contudo não és minha...”. Quem disse que não sou sua, meu príncipe? - ela sorriu e beijou-lhe os lábios igualmente finos. Ele, sem reação, corresponde ao beijo, fazendo-o único e especial.
                - Como recebe minhas cartas? - arregalou os olhos.
                - Acho que alguém tem muitas coisas para explicar, não é meu bem? - ela diz, sorri e agacha-se para passar as mãos nos pelos macios de Bob.
                - Bob? - ele espanta-se novamente. O cachorro late e pula em cima do dono, abanando o rabo – Acho que você não é só um cachorro, não é? - ele ri e o cachorro late.
                Eles levantam-se, e Bob empurra Alexandre para Roberta. Eles se beijam, e o cachorro põe-se sentado, mirando a cena, o cachorro “sorri” e uma lágrima cai de seus olhos negros. “Serviço feito”, ele parecia transmitir.

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