terça-feira, 22 de novembro de 2016

Bicho Papão.


   Um monstro com duas cabeças corria atrás de mim, depressa, soltando fogo pela boca... Eu tentava me afastar, mas percebi que minhas pernas não funcionavam. No momento em que ele estava prestes a me atingir, acordei, soltando um grito.
    Quis chorar, mas sabia que mamãe logo viria me ver. Não precisava ter medo.
    Só que ela não veio.
    Enfiei a cabeça debaixo das cobertas, por que o quarto estava todo escuro e só pensava nos bichos e dragões, e em todo aquele fogo.
    Não consegui ficar lá sozinha, pulei a muralha de ursos de pelúcia que tinha ao redor da cama e fui direto pro quarto dos meus pais.
    Eles iriam me proteger dos bichos feios e poderia sonhar com várias fadinhas coloridas!
    Mas antes de bater na porta, escutei alguns gritos. Só não entendi porque gritar, se estava tudo tão silencioso, e nem o Toddynho, nosso cachorrinho, estava latindo naquela hora!
    — E o que pensa de mim, afinal? Não sou esse tipo de homem!
    — Não é o que vem parecendo ultimamente. Então, repito, pode ir embora, é livre pra isso.
    — E o quê? Deixar Analú pra trás? Caramba! Além de ser um péssimo marido, nem imagino como deve me classificar como pai, hein?
    — Não diga besteiras, Diogo! — Mamãe chamou papai pelo nome, e não por “meu bem”, como sempre faz. Acho que... Será que aquela era uma briga como as que a Lari disse que os pais dela tinham, quase todos os dias? — Não te reconheço mais. Vive para o trabalho, como se isso fosse o mais importante na vida!
    — E é, Eduarda! Nesse momento é! Preciso dar o melhor para você e Analú, não entende isso? Desde que casamos, assim que você engravidou, temos lutado tanto! Não tivemos nem tempo nos encaixar na nossa própria vida a dois e agora que tudo melhorou, temos que lutar para manter isso!
    Ouvi mamãe chorar, depois papai suspirou, só que nenhum dos dois falou mais nada.
    Estava assustada com os gritos, mas o silêncio me fez ter muito mais medo.
    A fechadura da porta rodou e tive que sair correndo pro meu quarto. De lá escutei os passos pela casa, depois o barulho da porta se fechando.
    Meu coração apertou assim que ouvi o motor do carro do papai. Pelo jeito ele nem havia pego o casaco antes de sair.
    Como ia aguentar o frio lá fora?
    Não consegui entender. Se estavam bravos um com o outro, não me importaria em deixar a mamãe dormir comigo naquela noite... Só acho que papai não precisava ter ido embora.
    Mas e... se ele nunca mais voltar? A Regina, uma colega da minha sala, me disse que o pai dela saiu de casa e até se casou com outra mulher depois.
   E se, enquanto estivesse fora de casa, o papai encontrasse outra esposa? Ou até outra filha?
    Os monstros do meu pesadelo já não me davam medo, mas escutar o choro da mamãe do outro lado da parede me fez abraçar forte o José, meu elefante de pelúcia preferido.

    Acordei assustada ao ouvir o barulho da mamãe abrindo a janela do meu quarto.
    — Bom dia, amor! — me sorriu, tirando a coberta de cima de mim. — Vamos levantar? Tenho que te levar na natação e depois terminar a encomenda de um bolo para o almoço.
    Fui pra cozinha ainda sonolenta, mas logo o cheiro de bolo e do leite quente com Nescau me despertou magicamente.
    E então percebi que a cadeira onde papai sentava sempre para o café da manhã estava vazia. Ele não voltou pra casa?
    — Cadê o papai?
    — Saiu mais cedo pro trabalho hoje, querida.
    Senti raiva, porque se fosse adulta ia poder dizer que sabia que mamãe mentia, sem que ela tentasse me desconversar de novo.
    Mesmo contrariada, tomei café e depois mamãe me deixou na natação, voltando pra casa para terminar o tal bolo. Mais tarde, enquanto mamãe preparava o almoço, tomei banho e assisti desenhos animados.
    Mas na verdade, sempre que passavam na frente de casa ou mamãe fazia algum barulho diferente na cozinha, olhava para a porta da sala, pensando ser o papai.
    Depois ajudei mamãe e por a mesa, mesmo contrariada. Queria ficar de olho, caso ele aparecesse.
    Quando voltei para a cozinha, já com o prato servido, papai acabava de deixar sua pasta no sofá. Corri, abraçando suas pernas bem forte.
    — Que bom que voltou, papai!
   Nos sentamos à mesa para almoçar, só que muita coisa estava diferente.
   Nem o papai nem a mamãe pareciam muito animados em conversar. O que piorou quando papai deixou o prato de lado, sem ter comido tudo.
    Mamãe bufou, parecendo irritada: — O que foi? A comida não está boa?
    — Eduarda — de novo aquilo de chamar pelo nome. — estou sem fome e com pressa.
    — Está bem. Mas espero que esteja lembrando que hoje você quem leva Analú na escola!
    — Não posso. Tenho audiência no fórum daqui quarenta minutos.
    — E eu preciso terminar uma encomenda para agora à tarde!
    E então aqueles gritos começaram de novo. E eles nem se importaram com o fato de eu estar ali perto, vendo tudo.
    Foi ruim ver papai chegar e nem cumprimentar a mamãe com um selinho, como sempre fazia; além da conversa que tínhamos durante o almoço, onde eu sempre podia contar sobre o que aprendi na natação, mas que não aconteceu do mesmo jeito hoje.
    Ouvir os gritos doeu muito mais do que tudo isso junto.
    Pedi pra parar com a briga umas duas vezes, mas não me escutaram.
    Então saí correndo pro meu quarto e deitei na cama, abraçando o José. Não queria ouvir mais nada!
    Foi aí que vi o porquinho em cima da minha mesa de cabeceira e tive uma ideia!
    Peguei o cofre e voltei para a cozinha, onde mamãe já estava de costas pro papai, como se pudesse ignorá-lo enquanto ele continuava gritando.
    — Parem de brigar, por favor! — falei mais alto, o que funcionou, porque os dois enfim me olharam. — Aqui, ó! — aproximei deles, entregando o porquinho pro papai. — Pode ficar com ele pra vocês.
    — Meu bem, isso é seu, porque está nos dando? — papai se abaixou pra ficar do meu tamanho.
    — Se as brigas forem por causa do trabalho e de dinheiro, dou as moedinhas. Aí não vão precisar trabalhar muito por um tempo e nem vão mais brigar.
    — Filha... — mamãe se aproximou de nós, já chorando.
    — Parem de brigar, por favor. Não quero que o papai vá embora de novo. E nem que arrume outra esposa ou filha por ai...
    Os dois só se olharam, depois me abraçaram forte, enquanto mamãe ainda chorava baixinho.
    Eles recusaram meu cofrinho e então achei que voltariam a brigar. 
    Mas isso não aconteceu. Acho que, no fim das contas, minha ideia havia funcionado.
    E eu ainda tinha minhas moedas.

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